Acerca do debate sobre Religião e Alimentação
“Cozinhar é um modo de amar os outros”
Debate na Mesquita Central de Lisboa realça papel das religiões na promoção de uma alimentação saudável, valorizando o acto de comer e os sistemas tradicionais de produção.
Palavras de Mia Couto serviram de ingrediente para uma conversa servida na Mesquita Central de Lisboa com uma pergunta na ementa: “Como alimentar a Humanidade de forma sustentável?”
O debate foi promovido pelo Clube de Filosofia Al-Mu’tamid, uma parceria entre a Área de Ciência das Religiões e a Comunidade Islâmica de Lisboa, que todos os meses leva uma Tertúlia – como lhe chama a organização – ao salão de eventos da Mesquita.
Francisco Sarmento, o representante em Portugal da FAO – organização das Nações Unidas para a Aalimentação e Agricultura –, abriu o apetite da conversa citando o poeta moçambicano, biólogo e escritor, para realçar a importância de encarar a alimentação com responsabilidade ética: “Cozinhar é o mais privado e arriscado acto, no alimento se coloca ternura e ódio, na panela se verte tempero ou veneno. Cozinhar não é um serviço, cozinhar é um modo de amar os outros”.
A partir destas palavras de Mia Couto, Sarmento salientou que “alimentação e sustentabilidade têm de estar juntas”, pois “não se pode alimentar a Humanidade de forma insustentável”.
O especialista em gestão alimentar e políticas agrícolas alertou para o novo problema da produção excessiva de calorias, em vez de nutrientes, que faz aumentar a incidência de doenças como obesidade ou diabetes, desencadeando indirectamente, entre outros dramas, a exclusão social e absentismo laboral. A situação é mais grave nos países em vias de desenvolvimento “que não têm sistemas de saúde capazes de responder”, verificou. Francisco Sarmento alertou ainda para a necessidade de “mudarem os padrões de consumo alimentar, com a evolução para dietas” mais saudáveis e ecologicamente sustentáveis, e admitiu que esta discussão pode ser frustrante uma vez que as soluções são conhecidas mas parece faltar vontade política para contrariar uma “alimentação cada vez mais industrializada, que afecta os grupos mais desfavorecidos”.
A preocupação social foi reforçada pelo presidente da Caritas Portuguesa. “A comida não deve ser um negócio”, disse Eugénio da Fonseca, lembrando que “não se pode desligar o modelo económico da realidade da má alimentação e suas consequências”.
Para Eugénio da Fonseca é inconcebível que 12 mil milhões de pessoas tenham hoje insuficiência alimentar e fome crónica, quando nos países desenvolvidos “se produz em excesso e se come demais” deixando o que sobra para as redes de solidariedade. O presidente da Caritas critica as acções de luta contra o desperdício “que se limitam a distribuir os excessos, mantendo a pobreza, em vez de actuarem no início do sistema de produção”, desencadeando assim políticas de combate às desigualdades e à pobreza.
Paulo Mendes Pinto deu o enquadramento religioso à Tertúlia. “As religiões valorizam o acto de comer”, lembrou o professor e coordenador da Área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona, “sobretudo entre os monoteísmos, em que a refeição é central na sociabilização e na prática religiosa”.
Se as narrativas religiosas acentuam que o alimento “provém do Divino e o Divino há-de prover, do mesmo modo o limite do alimento é o da vontade divina”, explicou Mendes Pinto, recordando que as mesmas narrativas religiosas monoteístas falam num “mandato” ao homem para distribuir com justiça e “cuidar da Terra participando no acto da Criação”.
O desafio religioso é o da “igualdade”, concluiu, “a alimentação é uma responsabilidade ética”, sendo por isso “assustador voltar a ver imagens de crianças a morrer à fome quando se sabe como superar essa carência”.
As estruturas sociais, incluindo as religiosas, “têm um papel pedagógico na alimentação saudável, valorizando o acto de comer e os sistemas tradicionais de produção”, acrescentou Francisco Sarmento, insistindo no reforço “dos produtores familiares, ligando o meio-ambiente à agricultura, reconstruindo sistemas localizados, de proximidade, na produção e na confecção”, para atenuar o uso químico de conservantes.
Entre a assistência deste debate realizado na Mesquita Central de Lisboa esteve também o embaixador de Israel, Raphael Gamzou, e o deputado israelita Josse Jonnah, do Partido Trabalhista de Israel, que interveio para realçar a “responsabilidade das religiões”, pois o problema da alimentação e até das alterações climáticas, “é consequência do comportamento humano”.
O deputado, que é também professor de filosofia na Universidade de Ben-Gurion, lembrou o exemplo de Israel no aproveitamento sustentável e cuidadoso dos recursos naturais e propôs o intercâmbio de conhecimentos de forma a “promover a uma gestão sustentável”.
Texto de Joaquim Franco